A imprensa e a marginalização de pobres e afrodescendentes
Por Sandro Gomes
A segunda metade do século XIX se depara com importantes mudanças de conceito a respeito de certas questões na sociedade brasileira. As elites econômica e intelectual se veem às voltas com a necessidade de viabilizar um novo projeto de país, o que acontece sob grande influência das ideias liberais propagadas pelas potências hegemônicas de então, principalmente a França e a Inglaterra. Aí se desenvolvem algumas noções que vão se chocar frontalmente com as referências da maior parte da população brasileira, com suas visões de mundo baseadas em elementos culturais oriundos de tradições indígenas ou africanas, entre outras.
A segunda metade do século XIX se depara com importantes mudanças de conceito a respeito de certas questões na sociedade brasileira. As elites econômica e intelectual se veem às voltas com a necessidade de viabilizar um novo projeto de país, o que acontece sob grande influência das ideias liberais propagadas pelas potências hegemônicas de então, principalmente a França e a Inglaterra. Aí se desenvolvem algumas noções que vão se chocar frontalmente com as referências da maior parte da população brasileira, com suas visões de mundo baseadas em elementos culturais oriundos de tradições indígenas ou africanas, entre outras.
No cenário dos espaços urbanos no
Brasil, onde a presença afrodescendente se faz bem mais evidente que a nativa,
esse impasse cultural vai se aplicar à tentativa por parte das “cabeças
pensantes” do país de relegar a plano secundário as manifestações culturais
daqueles grupos que não expressem a visão influenciada pelo mundo europeu. É
nesse contexto que as populações menos favorecidas, formadas basicamente de
afrodescendentes, mestiços e outros grupos desprestigiados socialmente, vão ser
alvo do discurso de desvalorização, que se propaga sobretudo a partir dos meios
de comunicação representados pela imprensa escrita, então considerada
fundamental num projeto de nação “desenvolvida”. Um dos mais evidentes traços
desse processo é a marginalização de uma população que tem nas nascentes
favelas e bairros operários seu hábitat e seu espaço de expressão cultural.
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Morro da Favella (1974), de Tarsilla do Amaral |
Assim, aspectos religiosos e
biológicos se entrelaçavam para formar a base de definição de um tipo que
seria, no contexto da cidade moderna, relacionado às várias modalidades de
crime. Da vadiagem à prática da violência, da tendência homicida ao charlatanismo,
passando pelo perigo à “ordem pública”, ao desequilíbrio da sexualidade e da
insalubridade que ameaça toda a cidade. Todos esses são ingredientes que
apareciam com frequência nas diversas narrativas sobre as classes menos
favorecidas, seja a crônica de certas regiões da cidade, sejam as notícias nos
periódicos, estilos aliás que muitas vezes se confundem e colocam as
ocorrências numa espécie de limiar entre a verdade e a ficção.
A primeira localidade ocupada pelos
desterrados do verdadeiro processo de gentrificação que foi a reforma
urbanística do Rio de Janeiro capital federal, o morro da Favela, é um bom
exemplo dessa visão. Em 1900, apenas três anos depois de a prefeitura da
capital ter autorizado a ocupação do local pelos veteranos que participaram da
guerra de Canudos, a comunidade já era encarada aos olhos das autoridades e da
opinião pública como uma espécie de antro de ladrões e marginais. Cinco anos
depois, o engenheiro e jornalista Everaldo Backheuser, figura de participação
importante na remodelação urbana da cidade, escreve na revista “Renascença”
sobre a necessidade de dar fim à “pujante aldeia de casebres e choças” que
destoam da estética da capital, já que estão “a dois passos da grande avenida”
(referência à avenida Rio Branco, passeio principal do centro da cidade).
Em 1908, é a vez da revista “O malho”
exibir uma charge na qual aparece Oswaldo Cruz, à frente da Delegacia de
Higiene, ameaçando iniciar um processo de evacuação do morro da Favela. “A
Higiene vai limpar o morro da Favella, do lado da estação de Ferro Central. Por
isso intima os moradores a se mudar em dez dias”, diz a legenda que acompanha a
figura.
Pronunciamentos como esses vão se
tornando cada vez mais constantes e se estendendo a outras localidades no
entorno do centro da cidade. Ganham destaque nesse processo as coberturas de
acontecimentos policiais que se dão nos morros, e é aí que vamos nos deparar
com um tipo de jornalismo que se destacaria pelo esforço de enfatizar os
“perigos” das classes que moravam nessas comunidades. Narrativas que ajudavam a
estereotipar os primeiros morros cariocas, e também os bairros populares e
proletários, como “lugar sem lei”, onde a tendência delinquente da maior parte
dos moradores o tornava um local que destoava do padrão “civilizatório” que se
buscava para a capital e para o país.
A questão racial aparece aí de forma
veemente e relacionada aos desvios éticos e civis atribuídos aos personagens
que assomam nas notícias. Em raras ocasiões os redatores evocam em seus textos
a questão do sujeito sem preparo para a vida de cidadão livre como uma possível
explicação para sua presença em episódios ligados a desordens públicas. Aliás,
raramente traziam quaisquer tentativas de justificação ou explicação,
limitando-se a abordar os supostos malfeitores, enfatizando seus crimes, seus
perfis patibulares e, claro, sua condição de afrodescendente.
A vadiagem também está relacionada a
certas questões que se apresentam no mundo do trabalho nos anos subsequentes à
abolição da escravatura. É que, liberados da repressão que os obrigava ao labor
organizado pelos senhores, muitos ex-cativos passaram a ver no trabalho
realizado nos moldes do capitalismo praticado no Brasil, no limiar entre os
séculos XIX e XX, uma nova forma de escravidão, no sentido de que continuariam
sendo submetidos a longas jornadas de trabalho e com remunerações muito baixas,
além de permanecerem subjugados a uma forte ordem hierárquica, ainda que não a
do proprietário de escravos.
Dessa forma, muitos afrodescendentes
preferiram viver de economia de subsistência ou de pequenas atividades de
exploração natural destinadas a sanar as necessidades mais imediatas, numa
situação que, além do egresso da escravidão, era partilhada também pelo
trabalhador não escravo que, por conta da chegada de mão de obra imigrante,
perderia espaço no mercado de trabalho e precisaria se submeter a situações
desvantajosas. Como o interesse dos grandes proprietários era de que os gastos
com mão de obra permanecessem próximos ao do trabalho cativo, partia deles –
através de seu maior acesso aos espaços de criação do discurso – a disseminação
de uma visão que buscava desqualificar o trabalhador, de alguma forma
construindo sobre ele o estigma do marginal ou do vadio.
As crônicas e notícias de crimes
envolvendo marginais afrodescendentes raramente estabeleciam alguma relação com
o recente passado escravista. Preferiam a omissão desse dado, o que acabava
abrindo espaço para uma visão racial da criminalidade. Em outras palavras,
colaborou para fortalecer a ideia de que afrodescendentes, por questões
“naturais” e/ou culturais, eram propensos a atividades repudiadas pela visão
“civilizada”, como a marginalidade e a vadiagem.
O Brasil das cadeias lotadas de
indivíduos em sua maioria não brancos, da barbárie humana praticada no crime
que hoje se abriga nas comunidades pobres do país, a violência policial que se
projeta preferencialmente sobre os mais humildes e moradores de áreas
desprestigiadas das cidades é uma consequência lógica dos discursos que as
elites brasileiras ajudaram a propagar através de uma mídia quase sempre
subserviente a um projeto de país subordinado às influências de outras nações.
Assim foi aberto o caminho para a indiferença de grande parte da população
brasileira para as questões que dizem respeito aos pobres, aos afrodescendentes
e a seus corolários do mundo de hoje, os marginalizados de todo tipo.
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