A visão nacional sobre o indígena e suas raízes no pós-independência
Por Sandro Gomes
O início do século XX seria marcado
por uma importante mudança na relação entre a nação brasileira e seus povos
originários. As políticas de aproximação com os indígenas, empreendidas pelo
sertanismo da época, vão se sobrepor a um longo período de desvalorização das
culturas nativas levado a cabo a partir da segunda metade do século XIX, quando
as elites resolvem acalentar a ideia de que o índio é a representação de um
Brasil distante dos ideais de “cultura superior” supostamente presentes em
outras nações materialmente mais desenvolvidas e que nos servem de espelho.
A história da
relação entre a cultura ocidental, para cá trazida pelos povoadores ibéricos, e
os nativos da terra tem início nas tentativas de “civilizar” o índio a partir
do missionarismo religioso, calcado na ideia de catequese cristã e conversão
dos naturais em súditos do rei. Enquanto puderam atuar, os jesuítas conseguiram
levar adiante alguns empreendimentos de enquadramento do indígena nas
instituições europeias, mas sempre tendo que lidar com a faina muitas vezes
desenfreada de aventureiros interessados em lucrar, para isso explorando os
nativos como mão de obra ou perseguindo-os para o comércio de seres humanos.
Com a chegada do
iluminismo do marquês de Pombal ao Brasil no século XVIII, os inacianos foram
impedidos de prosseguir com seu projeto “civilizatório” (apesar de que outras
ordens prosseguiram com o trabalho), ficando este a cargo principalmente do
estado, que se propunha a promover a integração do indígena na sociedade
luso-brasileira. As propostas pombalinas, porém, seriam muito menos eficientes
do que as ações religiosas, tendo como resultado uma exposição muito maior do
indígena à ação de ambiciosos.
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Anchieta e os curumins, de Maurício Takiguthi |
Esse quadro na
verdade abriria caminho para a visão que defendia a exclusão do nativo da
formação cultural brasileira, que de fato viria a ser levada a cabo na segunda
metade do século XIX, quando o crescimento das cidades brasileiras passa quase
sempre pela expulsão das aldeias próximas. Um processo que levava os nativos a
se refugiarem cada vez mais no interior do país, dando a impressão de que pouco
a pouco desapareciam do horizonte da nação. Processo naturalmente acompanhado
da construção de um imaginário frente à população, no qual a imagem do indígena
é cada vez mais estereotipada, consolidando o desinteresse dos brasileiros pela
situação de seus primeiros moradores.
As políticas de
inclusão do indígena na vida brasileira introduzidas nos primeiros anos da
república viria assim a pôr fim a esse caráter exterminista construído algumas
décadas antes. Fortemente influenciado pelos ideais positivistas, o sertanismo
representando pelo Marechal Cândido Rondon, apesar de soar como uma iniciativa
moderna para a época, tinha suas raízes na visão defendida pioneiramente quase
um século antes no pensamento de uma das grandes cabeças do Brasil
pós-independência. José Bonifácio de Andrada já havia formulado, como
constituinte da primeira carta após a autonomia política, um conjunto de
propostas para a integração do indígena. E foram essas ideias a base do
indigenismo rondoniano.
O Patriarca da
Independência entende que o início desse processo passa pelo reconhecimento por
parte da nação dos prejuízos causados aos indígenas desde a chegada dos
povoadores. O cativeiro a que foram submetidos e coisas como “o roubo contínuo
de suas melhores terras” são assumidos como causas do isolamento dos nativos em
relação ao resto do país “civilizado”. É baseado nisso que a postura pacifista
aparece como um ponto inegociável das estratégias de aproximação do sertanismo
de Rondon, consubstanciado na célebre frase que o militar erguia à condição de
lema: “Morrer se preciso, matar nunca”.
Aliás, a própria
noção de sertanismo, como ciência que prega o profundo conhecimento dos
ecossistemas nativos (incluindo os seres humanos) para viabilizar ações
racionais e harmônicas, já está presente nas propostas de Bonifácio. Ele propõe
a mudança no conceito das bandeiras, que deixariam de ser vistas como simples
excursões destinadas a “amansar” índios e integrá-los na marra nas engrenagens
produtivas. Ao contrário, a atividade de aproximação com os nativos deveria ser
praticada “por homens honrados e escolhidos”, um perfil muito diferente do
tradicional bandeirante, quase sempre um tipo rústico e violento.
Importante observar
também que a ideia de inferioridade racial, que décadas mais tarde vai virar
moda entre os “homens de ciência” no Brasil, não é abrigada na visão de José
Bonifácio. Para ele o suposto atraso das culturas indígenas em relação aos
europeus resulta da experiência histórica e não de predisposições biológicas.
Por esse motivo a ideia de integração dos nativos na vida da nação está baseada
na suposição de que, uma vez em contato com uma “cultura superior”, como crê,
nada impede que os filhos do continente se transformem em uma das linhas de
força do desenvolvimento da nação.
É em virtude disso
que as missões de Rondon, quando conseguiam estabelecer um contato com o
cotidiano das etnias indígenas, tratavam de estimular a conservação do seu
patrimônio cultural, o que se configurava pelo respeito e preservação da
sabedoria dos mais velhos (teoricamente menos suscetíveis a mudanças mais
radicais), enquanto aos jovens era aberta a possibilidade de “desfrutar” dos
valores civilizacionais dos não-índios, como o acesso à alfabetização e o
conhecimento de técnicas e profissões. Tanto no contexto de Bonifácio, quanto
no Brasil do século XX, a integração do indígena era vista como traço
importante no desenvolvimento nacional.
Um ponto já
presente nas propostas de Bonifácio e que não só foram seguidas pelo programa
rondoniano como também se transformaram num tema ainda hoje presente na questão
indígena no Brasil diz respeito à situação da terra. Os índios deveriam ser
considerados os legítimos proprietários do território nacional, de forma que
deveriam ser ressarcidos pelo estado pelas terras utilizadas pelos não-índios.
Essa posição na qual a sociedade brasileira como um todo se assume como
“usurpadora” de um direito naturalmente pertencente ao nativo seria
posteriormente um elemento fundamental para garantir a integridade e a
autonomia das diversas etnias, motivo pelo qual as expedições de Rondon
incluíam a demarcação das terras, como procedimento padrão na relação entre o
estado e os indígenas.
É claro que,
comparada à visão que temos hoje das culturas originárias do continente –
vistas de forma relativa sem o olhar hierarquizante praticado no passado –, as
propostas de Bonifácio, seguidas pelo sertanismo do século XX, não se livravam
da ideia de superioridade da cultura europeia, que deveria se impor sobre a
inferior para resultar na grandeza do país. Uma visão que seria altamente
responsável pela perda de identidade das etnias nativas, ainda que sem a
brutalidade nos tempos das bandeiras.
Mesmo assim, parece
não haver dúvida de que, postas em prática já a partir daquele início de século
XIX e prosseguindo até hoje, as medidas defendidas pelo Patriarca da
Independência teriam deixado um resultado muito melhor do que o que temos hoje,
tanto na situação dos próprios indígenas, quanto na relação entre eles e a
cultura ocidental hegemônica entre nós. Parece provar isso a retomada de
tradições e heranças culturais que várias etnias puderam realizar nos últimos
anos no Brasil, após os bons resultados da política de demarcação, consolidada
a partir da Constituição de 1988. Que tenhamos a sabedoria de manter sempre à
vista esse passado protagonizado por gente como Bonifácio e Rondon, pautando as
relações do país com seus primeiros e legítimos habitantes.
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