Como nasce no Brasil colônia a justiça implacável contra os menos favorecidos
Por Sandro Gomes
Nos
últimos anos o Brasil tem testemunhado uma presença provavelmente inédita de
assuntos ligados ao direito em seu cotidiano. A partir da ideia amplamente
disseminada de que a corrupção encerra todos os problemas do país (um mito para
alguns), algumas ações voltadas para exercer a justiça, como processos e
forças-tarefa, têm ganho relevância entre a população, recheando os noticiários
da grande mídia e estando entre os mais assíduos temas em conversas e redes
sociais.
Essa
ascensão do universo jurídico na vida brasileira atual tem também deixado mais
evidente uma série de impropriedades e deficiências que nos dão a ideia de que
a justiça é pra nós brasileiros algo ainda distante. Um item da vida pública
destinado principalmente a servir a uma parte privilegiada da população.
E essa
ideia se torna bastante compreensível quando fazemos um retorno no tempo e
analisamos como o direito se estabelece entre nós, deixando suas raízes até os
dias de hoje. A primeira autoridade jurídica a ser exercida em nosso território
são os chamados juízes ordinários, voltados para atuar no âmbito dos crimes de
um modo geral (só não era evocado para os casos envolvendo crianças, que
ficavam a cargo de outro cargo de justiça, o juiz de órfãos). Para julgar as
ocorrências que surgiam, esses “magistrados” se utilizavam apenas dos usos e
costumes, pois nenhum tipo de corpo legislativo havia sido designado pelo
colonizador para balizar a ação desses juízes do lado de cá do oceano. Até
porque, como estamos falando dos primeiros tempos da presença portuguesa, não
havia por aqui quem tivesse conhecimento de leis.
O modo
como um indivíduo chegava a alcançar esse cargo já diz muito sobre o sentido da
justiça por ele exercida. Era escolhido através do voto dos chamados “homens
bons”, tidos como tais obviamente homens adultos, com certas insígnias sociais,
como ser nobre ou proprietário de terras, sendo aceitos também militares e
religiosos. Dependendo da localidade, algumas categorias profissionais, como
carpinteiros ou pedreiros, organizados nos chamados “oficiais mecânicos”,
podiam ter algum poder de escolha.
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"Castigo de escravo", de Jean Baptiste Debret |
Dispensável
dizer que estavam fora dessa atribuição os trabalhadores simples, indígenas,
escravos, mulheres e os de “marcas de nação infecta”, isto é, descendentes de
judeus, mouros ou ciganos. A primeira autoridade jurídica do Brasil já nascia
mais vinculada aos que a elegiam e distantes daqueles que teoricamente mais
precisariam da lei para escapar às injustiças de uma terra inóspita como era a
colônia em seus primeiros tempos.
A
pouca efetividade que os operadores do direito demonstrariam com relação aos
poderosos da terra também está relacionada com o próprio sentido da
colonização. Aos donatários e mais tarde aos grandes proprietários de terra
cabia toda a defesa de seus domínios e a manutenção da ordem social. A
participação do colonizador nessas atividades foi sempre muito reduzida, o que
explica que pouquíssimas restrições fossem determinadas aos mandatários do
reino, que assim naturalmente desenvolveram uma cultura de mando e poder pleno
sobre suas posses e tudo o que houvesse nela, incluindo seres humanos.
Nem a
chegada de uma outra figura jurídica à colônia, teoricamente mais investida de
poderes, conseguiria limitar o poder de decisão dos abastados da terra. Os
juízes de fora tinham a vantagem sobre os ordinários de serem versados em leis
na Europa, o que em tese devia dar ao direito no Brasil alguma coisa de
universalidade e transferir as decisões jurídicas para uma instância mais
próxima do colonizador. Para atingir esse resultado, algumas deliberações
balizavam o trabalho desses magistrados, como a obrigatoriedade de não exercer
suas decisões no local onde residiam (daí o termo “de fora”) e até mesmo o
impedimento de contrair matrimônio ou manter relações estreitas com pessoas
residentes no lugar onde oficiava.
Nada
disso porém garantiu no país um direito que se mantivesse ao abrigo da
influência dos grandes potentados. Várias gerações de seus herdeiros que iam
estudar leis na Europa retornavam indicados pela coroa para serem os juízes de
fora na colônia. E é óbvio que exerceram um direito sempre propenso a manter o
poder dos grandes da terra. O estudo de processos e decisões proferidas por
magistrados mostra que de um modo geral o poder jurídico foi empregado para
interpretar cartas de doação, questões envolvendo sesmarias e desmembramento de
terras quase sempre decidindo a favor dos grandes proprietários. Não é por
outro motivo que abundam nesses documentos referências aos perdedores como
intrusos ou invasores de terras alheias, enquanto os potentados que sempre
saíam vencedores nas questões de posse de vastas porções e glebas entrariam
para a história como “desbravadores” do Brasil.
No
século XVII começa a aparecer no direito praticado na colônia a figura do
ouvidor-geral, um preposto do reino investido de muitos poderes, destinados
entre outras coisas a garantir o controle das riquezas diante do poder dos
proprietários locais. Tanto que o decreto que cria o cargo é voltado para
revogar os direitos que desde o início da colonização tinham sido dados aos
capitães donatários. Apesar de possuidores de prerrogativas de poder como as de
decidir pena capital e fiscalizar os tributos devidos à coroa, o que os fazia
poderosos e temidos, os ouvidores também esbarraram no poder dos ricos da
terra.
As
ameaças de rebelião na colônia são um bom exemplo de como isso ocorria. Como
não havia no Brasil tropas ou exércitos de Portugal em número relevante,
garantir a normalidade era algo desempenhado apenas pelas milícias mantidas
pelos ricos proprietários. Diante de casos que os envolvessem, os
ouvidores-gerais, como representantes máximos do reino, não tinham outra
alternativa a não ser “colaborar” com as demandas que interessavam às elites
locais, o que significou muitas vezes vistas grossas a desmandos que podiam ir
de justiçamento e vinganças até casos de desvios homéricos de verbas públicas.
Em compensação eram implacáveis com segmentos desprestigiados, como pobres,
índios e escravos, os malfeitores preferenciais da terra.
Num
contexto como esse, aparece como um caminho natural que as autoridades
jurídicas, além de ignorar os excessos dos mais abastados, passassem a se
beneficiar pessoalmente com as várias irregularidades, haja vista muitos
ouvidores-gerais terem retornado à Europa com a vida resolvida, enquanto alguns
se estabeleceram por aqui mesmo, ostentando quase sempre um estilo de vida
nababesco. Vendo através desse viés histórico, passam a não ser surpresa certas
situações no Brasil atual, como a de juízes amigos de réus, magistrados
julgando causas envolvendo familiares ou sócios ou membros de cortes jurídicas
manifestando preferências e opiniões fora dos autos. E muito menos causa
espanto que os mais pobres sejam sempre aqueles que mais conheçam a “força” da
lei.
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