A elite do café e como se apropriou da força criativa dos brasileiros do campo
Por Sandro Gomes
Historicamente a produção
agrícola tem sido a maior referência econômica para o Brasil, representada na
figura da chamada “grande lavoura”, isso desde o ciclo dos engenhos de açúcar
até a atualidade com o agronegócio. O único momento em que esse modelo não
predominou foi durante o ciclo do ouro, que pode ser encarado como uma espécie
de oásis de riquezas em meio a duas grandes culturas econômicas baseadas na
terra, o Brasil dos canaviais e o dos cafezais.
Mas para entender como se deu
esse percurso econômico, que serve de pano de fundo a importantes mudanças
culturais, precisamos recorrer a uma outra atividade, diferente das mencionadas
até aqui e com valor mais histórico e cultural do que de geração de riqueza.
Trata-se da atividade dos
bandeirantes, que de um modo geral era voltada para a captura de indígenas para
servirem como escravos nos engenhos que então começavam a se espalhar pelo
país. Como se tratava de uma atividade ainda incipiente, que mal chegava a
constituir um mercado, as comunidades de bandeirantes acabaram sendo mais
relevantes, do ponto de vista histórico, pelas transformações culturais que
provocam ao arrasar etnias indígenas, espalhando destruição e mortes e
desequilibrando a vida social na colônia.
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“Amolação interrompida”, do pintor Almeida Júnior. |
Mas um objetivo menos
pronunciado orientava os bandos de mamelucos liderados por descendentes de
portugueses que formavam o contingente das bandeiras: o sonho de encontrar
veios de metais preciosos no interior do continente, que não tardaram a ser
descobertos provocando uma até então inédita movimentação atrás do sonho do
enriquecimento.
A sede de lucros fez convergir
para as regiões auríferas do centro e centro-oeste do país gente de todas as
partes América portuguesa, além do aumento vertiginoso do número de lusitanos
que atravessaram o Atlântico atrás do tesouro escondido nas montanhas de Minas
Gerais e logo depois das novas capitanias de Goiás e Mato Grosso.
As riquezas oriundas do Ciclo
do Ouro deram origem à primeira grande conformação social e cultural no Brasil.
Os vultosos recursos da exploração aurífera financiaram a instalação de um
patrimônio material e institucional, que representou um grande salto
civilizacional para a até então quase totalmente agreste província lusitana.
Das fabulosas igrejas e prédios públicos erguidos por exploradores
bem-sucedidos ao surgimento de uma elite intelectual e artística, o Brasil do
ouro destoava de toda a realidade até aquele momento vivenciada pela população.
O declínio da economia baseada
no ouro, que começa a se tornar realidade entre o final do século XVIII e
início do XIX, com o quase exaurimento das reservas minerais, encerra esse
único momento da histórica econômica durante o período lusitano que não se deu
com ênfase na grande lavoura. A situação da população brasileira nos anos
subsequentes ao ocaso dos recursos da exploração aurífera era lastimável,
revelando quadros de miséria e abandono que passaram a predominar em áreas não
muito tempo antes ricas e prósperas.
Ali continuaria vivendo
basicamente aquela parte mais deserdada da população que nada pôde acumular dos
momentos de prosperidade da produção do ouro, enquanto os que de alguma forma
conseguiram se arranjar haviam partido para áreas que puderam continuar se
desenvolvendo mesmo sem os recursos do ouro, como era o caso do Rio de Janeiro.
Uma gente pobre e sem
expectativas, que se vê diante de um inusitado impasse, na medida em que está
assombrada por duas visões de mundo sem poder de fato viabilizar qualquer uma
delas. De um lado, uma situação que não permite mais o retorno a um modo de
vida como o praticado pelos bandeirantes, num contexto onde não cabe mais o
apresamento de indígenas e não há mais a expectativa de encontro de outras
riquezas. Já havia se perdido o traquejo de vida itinerante que caracterizava
seus ancestrais paulistas, depois de muito tempo engajados em atividades
sedentárias que se estabeleceram em torno das cidades mais desenvolvidas.
Tampouco lhes era possível prosseguir com o modo de vida urbano e com os
hábitos e costumes que mal ou bem reproduziam a partir da referência de pessoas
mais cultas e ilustradas.
Só restaria a essa grande
parcela de brasileiros pobres a ocupação de terras abandonadas ou devolutas,
nas quais praticar não mais que uma economia básica de subsistência. É nos
imensos espaços naturais da chamada Paulistânia, em pequenas roças ou
criadouros de poucos animais, que começam a se fixar, em capoeiras espalhadas
irregularmente ao longo das matas e nas proximidades de rios, as primeiras
famílias que constituíram o chamado Brasil caipira.
Uma gente que trazia ainda a
referência cultural do aventureiro bandeirante, com sua intimidade com a vida
próxima dos espaços naturais, combinada com alguns toques da cultura
materialmente superior do ciclo do ouro, como a prática religiosa e um certo
gosto artístico expresso, por exemplo, pela presença de manifestações como a
música e a dança entre suas atividades culturais.
Essa gente aos poucos vai
viabilizando o que mais tarde começa a despontar como uma formação
mercadológica em torno da produção agrícola e pecuária que de forma cada vez
mais sólida vai sendo praticada pelo caipira. Começam a ter forma as primeiras
cidades, com o estabelecimento dos famosos “arraiás”, como ponto de encontro de
gente espalhada por propriedades mais ao interior, e também as primeiras igrejas.
Uma vida econômica e cultural
vai se dinamizando quase sem nenhuma ajuda do estado e sem qualquer tipo de
empreendimento monetário, achando suas próprias formas de desenvolvimento a
partir apenas da experiência aprendida de modos anteriores de viver.
É quando a vida e a economia do
Brasil caipira atingem determinado nível de estabilidade que outros segmentos
mais abastados despertam para as possibilidades de enriquecimento que ali se
desenharam. Se antes estivera completamente ausente das iniciativas da
população simples de buscar meios alternativos de viver, agora o poder público
é um ator fundamental na organização da economia promissora que se estabelece a
partir das fazendas do interior brasileiro.
Como seria de esperar, a ação
do estado ocorreria conduzida pela influência de grupos abastados ou influentes
que dali poderiam extrair benefícios. Instituindo leis ou obrigando o seu
cumprimento e mobilizando todo um aparato legal, o caipira há muito tempo
arraigado à terra, no modo de vida que ele próprio ajudara a criar, começa a
ser deslocado das novas possibilidades econômicas que se articulam, em favor de
figuras poderosas, que começam a se estabelecer como o protótipo do que mais
tarde seriam os grandes barões, uma elite aristocrática, quando a economia
rural se viabiliza como mercado e passa a gerar riquezas para o país.
Cartórios que legalizam terras
bem localizadas, antes pertencentes a famílias simples, que agora passam para a
posse de grandes empreendedores são instituições cada vez mais presentes no
campo, muitas vezes servindo também para “esquentar” terras adquiridas por
grileiros através da expulsão forçada de antigos caipiras.
As famílias que conseguiam
manter sua terra em situação de certa independência em relação às grandes
estruturas produtivas estavam quase todas situadas em regiões de menor
interesse comercial ou então tinham conseguido de alguma forma adequar a sua
produtividade à de grandes fazendeiros, atuando como meeiros ou arrendando
terras.
A transição do Brasil caipira
para o dos barões do leite e do café que passaram a dominar a economia,
sobretudo no Sudeste do país, se faria à custa de muitas injustiças sociais e
vergonhosas associações do poder público com interesses de poderosos. O caipira
tradicional foi sendo gradativamente expelido de suas terras e do modo de vida
que aprendeu a praticar a partir das parcas condições que encontrou.
Mesmo assim, orgulhoso de seu
passado e de suas origens, muitas vezes foi tido, aos olhos do país que
enriquecia e se desenvolvia à sombra dos cafezais, um tipo que representava o
atraso e a inferioridade cultural.
Expressões como o adoentado e
preguiçoso Jeca Tatu de um filho do baronato do campo como Monteiro Lobato
refletem essa visão que o Brasil das classes dominantes passou a acalentar sobre
um dos mais autênticos tipos culturais brasileiros. Nunca a de um personagem
que soube reconstruir das ruínas de uma civilização decadente uma nova forma de
viver e desenvolver, contando apenas com sua própria criatividade e a
experiência de ligação com a terra.
O país dos barões, que mais
tarde serviu de base para o desenvolvimento que nos colocou entre as maiores
economias do mundo, vai ser sempre tributário da força e da resiliência do
caipira brasileiro.
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